Bagagens 

Carregava em si todas as histórias do mundo.

Quando contava a sua própria (apenas uma das várias) o diziam louco. Eu apenas o ouvi. Não fiz juízo, nem teria capacidade de fazê-lo. Tal qual um Buda do sertão, abandonou a vida farta para viver de poucos, um tanto de cada vez. Como um falso messias, espalhava palavras rasas pelos cantos, ganhando fãs que o esqueciam assim que saía. Se a história era boa, ganhava um prato de comida que dividia comigo. Quem sabe um leito pra passar a noite.

Ele me encontrou dormindo nas sombras de um cacaueiro. Esperou meu despertar para contar-me tudo aquilo, tentando adivinhar minha reação. Eu nunca fui de falar muito, mais um bom ouvinte. Emendou um pedido: que o acompanhasse nas caminhadas. Já que passava os dias sem fazer muito, não custava fazê-lo junto de alguém.

Até o dia em que, numa cidadezinha de duas ruas e uma praça, algo mudou. No mesmo tempo que a gente, um circo se instalou praquelas bandas, trazendo fervor pra um lugar antes congelado. Tanta foi a ebulição que ninguém deu atenção ao caixeiro e seu companheiro baixinho. O que aconteceu foi o contrário: alguém prendeu a atenção do contador de prosa. A mocinha do circo. A caixa-cartomante-malabarista-filha do dono.

Encontravam-se todo dia atrás da lona remendada à noitinha, depois do espetáculo, à espreita do pai que ficava contando os ganhos do espetáculo do dia. Não aceitaria aqueles dois juntos. Eu também não era o maior apoiador, mas não me intrometia. Eu na minha e eu na dele. Mas as nossas conversas diárias antes de dormir agora eram raras. Ele que dividia todas as refeições comigo, agora me fazia ter de mendigar aos outros que por compaixão não me deixavam definhar em fome. O homem fantasiador e visionário que conheci deixou-se seduzir e cegar pelos olhos mentirosos da cigana artista.

Já estava a seguir meu caminho a sós. Não o fazia com raiva ou por vingança. Não tínhamos um contrato eterno de amizade. Somente era chegada a hora de cada seguir a trilha do seu jeito. No pouco tempo que o universo me permitiu existir, conclusões poucas surgiram a minha mente as quais tomei como verdade para mim. Uma delas é a de se ater àqueles que amamos, quem quer que seja, da forma mais intensa e visceral possível. Porém, assim como a vida, nada é eterno. Então, quando é chegado o momento do adeus, ele não deve ser fatigadamente postergado. Humildemente, temos de deixar de ir. Ainda assim, faria alguém notar minha ida, para que avisassem-no, caso procurasse por mim.

Prestes a partir, ele chegou. Com uma expressão desconfiada muito me familiar, com o rabo entre as pernas. Antes de se desculpar pelo desaparecer, contou que a nômade do olhar furtivo sumiu junto do circo e do frio da noite, sem deixar um rastro de orvalho para trás. Somente abandonou o coração esfolado do viajante permanente. Agora estava sem nada, até suas histórias foram sugadas pelos abraços mornos da cigana da pele de jabuticaba. Queria saber se aceitava-o de volta. Em silêncio, acenei e fiz o afago que ele tanto parecia precisar.

Afinal de contas, cachorros não guardam rancor.

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